quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Onde estiveres, saiba que o amamos

Nosso Tio Durval (meu, e de incontáveis criaturas que tiveram o privilégio de dividir com a dele, a existência), defensor da satisfação das necessidades primordiais _ do corpo, e, paulatinamente, do espírito _, era brizolista:  "à criança é necessário o alimento e o ensino", dizia.  E, num tom apaixonado: "vejam a maravilha desse projeto, que as mantem durante todo o dia na escola, resguardadas dos perigos dos lugares onde vivem". Dizia-o, com a fala rápida e a entonação firme. 
Movidos pela implicância contra o político, dito "populista", a quem se atribuía fatos desabonadores que, conhecíamos, por ter ouvido falar, fazíamos: arghh... (às suas costas, que o amávamos demais para o submeter a qualquer contrariedade). Manifestávamos a indiferença fria dos que não sentem fome; dos que têm, protegidos, os filhos nos lares; dos  acostumados a tecer discursos inflamados sobre o que realmente resolve, sem levantar os glúteos da cadeira à frente da televisão, repleta de notícias alheias...
Tomado de  compaixão pelo semelhante, ele dividia com quantos o procuravam em busca de auxílio (e  eram muitos os que o faziam), o alimento, a palavra boa, o dinheiro tirado do próprio bolso. Importava-lhe que tivessem o pão à mesa e o espírito reconfortado. 
Convicto das realidades espíritas, não perdia oportunidade de ensinar aos que compartilhavam da  sua crença.
Certo dia, aborrecida por mais uma vez ter dado vazão à belicosidade que me caracteriza o espírito vulgar (comum), perguntei-lhe:
_ De onde vem essa ira, essa gana, que trazemos dentro de nós?...
_ Do tempo em que éramos bichos _ respondeu-me.
A resposta satisfez-me _ mas, convém explicá-la aos que professam outras doutrinas (estes decerto a terão achado um tanto esquisita): segundo os ensinamentos espiritualistas, antes de se tornar um ser humano, o homem vive experiências nos vários reinos da natureza, mineral, vegetal, animal.  À resposta do Tio Durval, vi-me transformada em um leão feroz, a estraçalhar, com os dentes pontiagudos, a presa. _ Cruzes!...
Quando num dia triste de outono, Tio Durval se foi deste mundo, sentimo-nos desamparados: "como continuar, sem a sua firmeza ou doçura, sem o seu amor?", pensávamos. Acompanhamos-lhe, consternados, o féretro _ ao qual, supúnhamos, seguiriam centenas das milhares de pessoas às quais ele estendera as mãos. Nele, contava-se pouco mais do que trinta pessoas.
Deu-se, então, um fato inusitado: os presentes, diante do tanto de bondade e de amor recebidos ou, testemunhados, viram-se à necessidade (premente, visto que partia) de expressar-lhe gratidão e, puseram-se a discursar, ininterrupta e infindavelmente (tamanho era o seu sentimento):
_ Alguém deseja prestar mais uma homenagem ao nosso amigo? _ perguntava-se.
E mais um discurso. E outro. E mais outro.
Sob o sol do meio-dia, os funcionários do cemitério aguardavam para levá-lo ao túmulo _ faziam-no com as cabeças sobre o cabo das enxadas e certo ar de contrariedade no rosto.
Até que à nossa limitação verbal, findaram-se os discursos. Despedimo-nos dele. Tornarmos às  nossa casas; tristes, porque somos humanos; felizes, no entanto, ao privilégio de sermos parte da sua família espiritual. _ Quanto o amamos!...

domingo, 11 de agosto de 2013

O perfil


Que não me engane a foto do perfil _ a mulher que vejo não sou eu. Não mais os cabelos semilongos e o sorriso ensaiado; não mais. Da mulher da foto trago os olhos sob as lentes dos óculos que me resguardam o suficiente da maldade dos olhos alheios _ de maldade basta-me a própria e, como pesa!...  
Tampouco sou o que agora aparento ser _ ou o que aparentei, tempos atrás. Quem (ou o que) serei então?... Quando souber, digo-me, pois ando em busca de certezas.
Também não quero ser a sombra sem rosto tornada disponível pelo "site" _ embora existam coisas que não queira revelar, nada tenho a esconder (se é que me entendes), porque tenho identidade,  tenho alma. Porém, se a identidade for irmã-gêmea do Ego, um dia também me livrarei dela. Mas, dou-me uma dica (que poderá servir-te, caso intentes conhecer-me um pouco mais): o negror do qual, às  vezes, reveste-se a minha alma, jamais permanece nela. Sou do dia, não da noite; da luz, não das sombras. Foi como escolhi ser. Gosto de árvores, de passarinho, criança, cachorro e borboleta. Gosto de  boa música e de poesia. Gosto também de livros. Aprecio a claridade do sol (embora a relação ardente com a lua) e a companhia de gente honesta e simples.
Anseio por ter a alma limpa e as contas pagas.
Na busca por revelar-me, descobri que na alegria todos me bastam; no sofrimento, apenas uns poucos _ a estes daria uma parte de mim, se necessário fosse.
Há pouco, quando sombras pairavam sobre a minha cabeça e eu caminhava sobre um pequeno abismo, pude ver um pouco de mim mesma e um tanto dos que estavam à  minha volta.  Disso restou o que pareço ser agora _ embora não me iluda quanto a isto, porque sou assim: à vera. Só por enquanto.  Enquanto tenho uma forma.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Amor, amor.



___ "Si tu quisé morrê, vela num vai faltá".
A frase, apesar do drama que revelava, teve a sua trágica carga aliviada pela entonação em que foi dita: reveladora de um amor dedicado, daqueles que,  à dor da perda ___definitiva, pelo menos no que diz respeito à vida neste mundo ___ do objeto do seu bem-querer, à fatalidade, cuidaria ao menos de não deixá-lo ao desamparo, desprovido da única coisa que naquele instante lhe serviria.
Movida por humana curiosidade, por alguns momentos me detive na contemplação do mar que tinha à frente, e então, virei-me, a fim de ver de perto aquele ser, capaz de admirável conformação e  amorosa atitude; também à felizarda que teria garantida a luz nos caminhos da morte, caso se decidisse por ela.
Indiferentes à minha curiosidade eles seguiam confabulando: ela tentava expor-lhe os motivos que a faziam pensar em abandonar a vida (que pareceu-me pesar-lhe não sei  por que razão, visto que pegara a conversa já no meio); ele argumentava que, à sua decisão, pouco lhe restaria fazer ___ ao mesmo tempo em que lhe colocava à disposição o seu amor.
A medida em que se foram afastando tornou-se difícil ouvir-lhes a conversa, mas vi quando a tomou nos braços e a beijou na boca. 
Nesse momento pude ver nela a peruca, que, sem qualidade, se desprendera da cabeça e resvalara sobre a testa. Ele a ajeitou cuidadosamente, assim como à touca  de tricô em vermelho, verde,  amarelo e preto, que trazia sobre a cabeça repleta de tranças no estilo "rastafari".
Depois de ajeitá-la e a si próprio, a segurou com as mãos negras, compridas e magras, pelos ombros ___ fartos da carne branca que se mostrava também farta nas pernas e coxas, que ela cobria com um short curto o suficiente para que as vissem ___ e a olhou bem dentro dos olhos.
Não sei do que ele lhe falara (porque já iam longe), mas pude perceber que era coisa séria.
Ao ver sumir o par na curva do caminho de terra e capim, pensei no quanto de tempo eles caminharam juntos pelo mundo e no quanto de tempo ainda caminhariam ___ somos eternos. E me pus de novo a olhar o mar.