terça-feira, 12 de novembro de 2013

TAMBÉM CONFESSO QUE VIVI





Esturriquei-me sob o sol do meio-dia até vê-lo desaparecer em meio as nuvens. Combinamos que, à sua volta, de novo eu estaria lá. Fi-lo no dia seguinte àquele, no outro, e em muitos outros; aliás, sempre que me permitira o dia ensolarado e o tempo livre da obrigação de parar  frente a um relógio de ponto, vê-lo confirmar a minha presença no local e me dirigir à sala sem janelas onde permanecia trancafiada durante quase todo o dia:  movimentava papéis de lá para cá, de cá para lá, em troca de um pouco de dinheiro _ pouco mesmo (suficiente para comprar duas calças "de marca", objetos de desejo da tardia adolescência, e nada mais. Mas, quem precisa morar, comer, vestir-se, calçar sapatos, comprar remédios, artigos de higiene, toilette, etc...? Quem precisa?... Ir ao cinema, teatro, viajar, então, nem se fala! Felizmente, não existiam os Iphone, Smartphone, Ipads, Itouch, I..., quase supérfluos, porém maravilhosos).
Tinha que trabalhar por mais de oito horas por dia, durante cinco dias da semana. Não dava para tomar sol e preencher os ossos com a tal vitamina D; mas, nisso dava um jeito, já que ir à praia me saía quase de graça: ficava lá, perigosamente estendida sob o sol, como uma lagartixa preta, doida!
Comia-se mal, não se tomava sol, não se cuidava adequadamente da higiene corporal, enfim, vivia-se mal; mas, a "empresa", a do relógio de ponto, pagava o plano de saúde (que até psiquiatra tinha) _ graças a Deus!...
A pele, (afortunadamente quase negra),  besuntada com um óleo cor de âmbar desprovido  do tal filtro solar (no qual não se falava; não que eu tivesse ouvido), a tudo resistia, e eu brincava de um dia ter sido quase branca. A quantos disso duvidassem, exibia o ebony and ivory no decote "feito para mostrar" da blusa comprada nas "Lojas Sabina" (podes calcular a idade de tudo isso, que a intenção é mesmo essa, a de localizar-me no tempo; tampouco me importarei com as alcunhas), a única acessível aos bolsos parcos de dinheiro. Não fosse pelas "Lojas Sabina", eu andaria nua (provavelmente me mandariam prender, que à época isso não era comum).
Também nesses tempos estranhos, à infância repleta dos corantes vermelho bordeaux e amarelo tartrazina dos ki-sucos; do pão com mortadela (cheia de aditivos químicos), de gordura de origem "animaltratado", e, "sabe se lá mais o que"; dos biscoitinhos (de queijo e outros sabores não identificáveis) fartos em gordura hidrogenada (trans?), e, GLÚTEN, o maldito; também nesses tempos, a adolescência louca e tardia guiava-me rumo aos rótulos aliciadores das garrafas cor de âmbar que prometiam "refresco absoluto" nos dias de calor (e também nos de frio da alma), qual o conseguido na Antártida, talvez (ou será Antárctica?). Havia ainda outra garrafa cor de âmbar cujo nome era o do Deus hindu; mas, a realidade estava além disto, das sugestões dos rótulos: o que se vendia, o que buscávamos, era o prazer proporcionado pelo embotamento temporário dos  sentidos. Naquela época não se falava disto abertamente. Hoje, no entanto, a proposta é explícita: "queres ficar doidão? ... Beba tal líquido, e serás levado ao extremo (EXTREME?)! Estarás às portas do inferno (a propaganda televisiva não deixa margens à dúvida)!...
Havia ainda uma garrafinha branca, de rótulo vermelho, internacional, com um líquido escuro que misturávamos com outros líquidos anestesiantes, sabe-se lá com que fim...
Talvez eu tenha estado por um fio; porém, não desenvolvi nenhuma patologia mórbida (nenhuma facilmente identificável). À época, como hoje, havia estupefacientes de efeitos ainda mais mórbidos que os das garrafas cor de âmbar, pelos quais, felizmente, não senti nenhuma atração.
Mesmo aos excessos cometidos, saúde não me tem faltado, embora os acidentes do percurso, possíveis a quaisquer dos que aportam neste mundo. E, afora o relatado (o omitido, fi-lo por precaução), afora tudo o que vivi, sobrevivi! Como o artista, pergunto-me: "existirmos, a que será que se destina?..."
E, a Deus:
_ Ó Deus, um dia me condenarás por me ter mantido assim, como um barco à deriva, nessa passagem tão rara pela vida?...
E, aprofundando-me um pouco mais:
_ Por que,  em chegando o juízo, a maturidade, retiras-no do mundo? ...  Por que, meu Deus?...
Quando puderes, diga-me (mas não precisa ser logo).