Nosso Tio Durval (meu, e de incontáveis criaturas que tiveram o privilégio de dividir com a dele, a existência), defensor da satisfação das necessidades primordiais _ do corpo, e, paulatinamente, do espírito _, era brizolista: "à criança é necessário o alimento e o ensino", dizia. E, num tom apaixonado: "vejam a maravilha desse projeto, que as mantem durante todo o dia na escola, resguardadas dos perigos dos lugares onde vivem". Dizia-o, com a fala rápida e a entonação firme.
Movidos pela implicância contra o político, dito "populista", a quem se atribuía fatos desabonadores que, conhecíamos, por ter ouvido falar, fazíamos: arghh... (às suas costas, que o amávamos demais para o submeter a qualquer contrariedade). Manifestávamos a indiferença fria dos que não sentem fome; dos que têm, protegidos, os filhos nos lares; dos acostumados a tecer discursos inflamados sobre o que realmente resolve, sem levantar os glúteos da cadeira à frente da televisão, repleta de notícias alheias...
Tomado de compaixão pelo semelhante, ele dividia com quantos o procuravam em busca de auxílio (e eram muitos os que o faziam), o alimento, a palavra boa, o dinheiro tirado do próprio bolso. Importava-lhe que tivessem o pão à mesa e o espírito reconfortado.
Convicto das realidades espíritas, não perdia oportunidade de ensinar aos que compartilhavam da sua crença.
Certo dia, aborrecida por mais uma vez ter dado vazão à belicosidade que me caracteriza o espírito vulgar (comum), perguntei-lhe:
_ De onde vem essa ira, essa gana, que trazemos dentro de nós?...
_ Do tempo em que éramos bichos _ respondeu-me.
A resposta satisfez-me _ mas, convém explicá-la aos que professam outras doutrinas (estes decerto a terão achado um tanto esquisita): segundo os ensinamentos espiritualistas, antes de se tornar um ser humano, o homem vive experiências nos vários reinos da natureza, mineral, vegetal, animal. À resposta do Tio Durval, vi-me transformada em um leão feroz, a estraçalhar, com os dentes pontiagudos, a presa. _ Cruzes!...
Quando num dia triste de outono, Tio Durval se foi deste mundo, sentimo-nos desamparados: "como continuar, sem a sua firmeza ou doçura, sem o seu amor?", pensávamos. Acompanhamos-lhe, consternados, o féretro _ ao qual, supúnhamos, seguiriam centenas das milhares de pessoas às quais ele estendera as mãos. Nele, contava-se pouco mais do que trinta pessoas.
Deu-se, então, um fato inusitado: os presentes, diante do tanto de bondade e de amor recebidos ou, testemunhados, viram-se à necessidade (premente, visto que partia) de expressar-lhe gratidão e, puseram-se a discursar, ininterrupta e infindavelmente (tamanho era o seu sentimento):
Deu-se, então, um fato inusitado: os presentes, diante do tanto de bondade e de amor recebidos ou, testemunhados, viram-se à necessidade (premente, visto que partia) de expressar-lhe gratidão e, puseram-se a discursar, ininterrupta e infindavelmente (tamanho era o seu sentimento):
_ Alguém deseja prestar mais uma homenagem ao nosso amigo? _ perguntava-se.
E mais um discurso. E outro. E mais outro.
Sob o sol do meio-dia, os funcionários do cemitério aguardavam para levá-lo ao túmulo _ faziam-no com as cabeças sobre o cabo das enxadas e certo ar de contrariedade no rosto.
Até que à nossa limitação verbal, findaram-se os discursos. Despedimo-nos dele. Tornarmos às nossa casas; tristes, porque somos humanos; felizes, no entanto, ao privilégio de sermos parte da sua família espiritual. _ Quanto o amamos!...
Sob o sol do meio-dia, os funcionários do cemitério aguardavam para levá-lo ao túmulo _ faziam-no com as cabeças sobre o cabo das enxadas e certo ar de contrariedade no rosto.
Até que à nossa limitação verbal, findaram-se os discursos. Despedimo-nos dele. Tornarmos às nossa casas; tristes, porque somos humanos; felizes, no entanto, ao privilégio de sermos parte da sua família espiritual. _ Quanto o amamos!...